Sobre o Holocausto e os holocaustos

Mariana Ochs
3 min readFeb 20, 2024

Em busca da solidariedade perdida

Dias difíceis na minha casa e no meu coração. Mãe, o Lula fez alguma coisa ruim? Tá todo mundo postando. Sim, filho, fez. Falou bobagem. Escolheu muito mal as palavras e provocou mais uma cizânia da qual não precisávamos, pois fala nenhuma tem importância alguma se não somos capazes de fazer o o que realmente importa: encerrar imediatamente essa matança infinita que não encontra justificativa por nenhuma lente humana ou moral. Quantas crianças morreram em Gaza só hoje, por bomba ou desmonte dos hospitais? Quantas ficaram órfãs, tiveram seus membros arrancados ou viveram acontecimentos dos quais não se esquecerão? E, no mesmo lugar, hoje a sucursal do inferno, quantas crianças israelenses permanecem reféns depois de presenciar horrores indescritíveis?
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Políticos erram bastante. Os meus, os seus. Os que ainda vamos eleger nos decepcionarão muitas vezes. Fora as excrescências que de vez em quando ameaçam a humanidade. Quem não erra são as agências humanitárias que, de lá onde ninguém quer ir, imploram por um cessar fogo denunciando condições que já passaram de todos os limites suportáveis há muito tempo. Uma violência que está dizimando toda uma população em nome de proteger nosso lugar no mundo — mas que, ao persistir, nos torna cada vez mais párias, e alvos de mais violência. Os relatos das agências humanitárias são o único noticiário que eu me forço a ver.
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O antissemitismo é real, acreditem. Percebo em alguns amigos, ativistas e jornalistas que, antes na mesma trincheira que eu, destilam ódio contra “os judeus”, e não contra um governo arrogante de ultradireita que não representa a todos os judeus do mundo. Nem se dão ao trabalho de falar “o governo de Israel” e me atacam sem perceber. Mas também é real a completa desumanização do povo palestino por aqueles que, indignados com a brutalidade sofrida no ataque terrorista, esticam o conceito de “direito à defesa” muito além do que é admissível. Não acho o tom certo para escrever. Os meus tomam o meu silêncio como uma traição à tribo. Os outros, como sinal de que apoio um genocídio. Não sou a única a me sentir sem lugar.
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A primeira vez que ouvi a palavra “holocaustos”, assim no plural e com minúscula, foi na boca de um professor de história na escola judaica onde eu trabalhava. Estudamos o Holocausto para entender que não podemos permitir nenhum outro holocausto, dizia ele. Era um diferencial da escola, esse humanismo, e todos pareciam gostar muito. Mas eram tempos de paz.
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Filho, eles não estão errados. Foi mesmo uma fala bem ruim. Mas esses que se se indignaram hoje, postaram alguma vez algum sinal de pesar por essa matança de civis em escala gigantesca? Não vi. Não viu ou não falaram nada? Não falam disso. Meu estômago aperta. Céus, que tempos bárbaros. Ensinamos crianças a desumanizar o outro, torcendo pelo seu lado como se tudo fosse um grande videogame.
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Meu pai, sobrevivente do Holocausto com H, não podia ver matança nem de formigas. Todos os que estavam acuados, sofriam violências ou eram desumanizados lhe importavam. Em filme de guerra, chorava. No noticiário, chorava. Ao ver pessoas em situação de rua, agarrados à sua dignidade de trapos e papelão, chorava. O contrário da família Hoss, do filme Zona de Interesse, que ví esses dias. Pensem na dissonância cognitiva necessária para conduzir seu dia a dia burgês e confortável com Auschwitz do outro lado do muro. Esse filme, sobre a negação da maldade, foi talvez um dos mais impactantes sobre o Holocausto que eu já ví.
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Decidí que irei estes dias ao Museu Judaico por uma estranha necessidade de reafirmar a minha identidade e ao mesmo tempo sentir a força da repugnância contra qualquer tipo de violência. Temos direito à memória desse evento único, entranhado em nosso DNA. Mas também têm o direito de tecer suas identidades da violência sofrida os descendentes dos pretos escravizados, as vítimas da Ucrânia, de Ruanda, os indígenas massacrados e certamente os palestinos em Gaza. Em todos esses casos, os que sobrevivem não esquecem. Jamais.
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Só me resta a pergunta: em que mundo iremos viver, quando todas as memórias forem tecidas de violência, e nenhuma de solidariedade?

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Mariana Ochs

Designer, educator, Google Innovator. Coordinator of EducaMídia. Exploring design, media and technology in education, and empowering youth in the digital age.