FAQ: A educação midiática

Mariana Ochs
7 min readJan 19, 2022

Tire suas dúvidas sobre a definição, a importância e a prática da educação midiática.

Texto publicado originalmente no blog do Amplifica.

Muitos falam de educação midiática, mas com pouco entendimento do que realmente significa. Como você define educação midiática?

A educação midiática engloba o arsenal de estratégias que precisamos ter para lidar de forma reflexiva e responsável com a abundância de informação no mundo atual. Desenvolve, essencialmente, as habilidades para a leitura crítica das informações e para a participação responsável na sociedade através das mídias — ou seja, propõe um olhar mais reflexivo e consciente para o que fazemos diariamente ao consumir informação ou entretenimento, comunicar-nos uns com os outros e participar do diálogo da sociedade utilizando mídias.

O excesso de informação em nossa sociedade hiperconectada é, ao mesmo tempo, uma oportunidade e um desafio. Uma oportunidade, pois amplia as possibilidades de aprendizado autônomo e de acesso a informações que nos permitem tomar decisões e acessar nossos direitos em uma sociedade democrática; e um desafio, pois a multiplicidade de autores e intenções exige atenção redobrada para a natureza e a confiabilidade das mensagens.

A mediação de educadores para o desenvolvimento dessas habilidades torna-se mais urgente à medida em que percebemos que os jovens da chamada “geração C” — habituada a estar em sociedade criando, compartilhando, colaborando e se comunicando no mundo digital — possuem habilidade no manejo dos ambientes e ferramentas, mas não necessariamente o senso crítico para discernir se o que estão consumindo e disseminando nesse ambiente é confiável, inclusivo ou respeitoso. Embora tenham cada vez mais possibilidades de aprender de forma autônoma, é urgente garantirmos que isso seja feito de forma segura e fortalecedora.

Há uma certa confusão entre educação midiática e educação tecnológica. Quais são as diferenças e intersecções?

A BNCC reconhece que a escola precisa preparar o jovem para a cultura digital — uma sociedade em que a tecnologia cada vez mais media as nossas relações sociais, de aprendizado, de trabalho e de consumo. Mas, para isso, precisamos entender a presença e o papel da tecnologia na educação sob duas formas distintas.

Ao explorarmos a tecnologia como ferramenta, tratamos do saber operacional para utilizar computadores, dispositivos, aplicativos e ambientes que apoiam o aprendizado, desenvolvendo a fluência digital que é essencial, inclusive, para participar do mundo do trabalho. Utilizar a tecnologia como ferramenta criativa é também a possibilidade de ampliar o aprendizado através da colaboração e da resolução de problemas, por exemplo pela via da robótica, programação ou design.

Mas a tecnologia é também linguagem, permitindo a comunicação e a convivência social através das mídias, esse território onde nos encontramos, conversamos, debatemos, investigamos, aprendemos, trabalhamos, publicamos e participamos. Nesse sentido, a educação midiática torna-se essencial para lidar criticamente com a cultura digital e suas implicações para a sociedade.

A fluência digital, ou seja, o domínio das ferramentas e práticas, é cada vez mais necessária para a inclusão no universo do aprendizado e no mercado de trabalho. Ser educado midiaticamente, por outro lado, é fator de equidade no acesso à informação com confiança, na possibilidade de construção de conhecimento e na participação efetiva na sociedade. É nesse sentido que afirmamos que a educação midiática é um direito dos jovens — e de qualquer cidadão.

Vocês no EducaMídia falam muito em educação midiática como camada nas disciplinas, e não algo dissociado delas. Como isso se traduz na prática?

Saber pesquisar, investigar, lidar criticamente com a informação e desenvolver a auto expressão em linguagens diversas são habilidades inerentes ao próprio processo de aprender de forma criativa e autônoma, e como tal podem ser desenvolvidas em qualquer disciplina. De fato, quanto mais inserirmos essas habilidades de forma transversal em nosso currículo, mais fortalecemos a autonomia dos jovens, possibilitando que “aprendam a aprender”.

Quando tratamos a educação midiática como camada, potencializamos o desenvolvimento da “criatividade crítica” — uma competência híbrida que combina o pensamento crítico e a criatividade. Nas palavras dos autores Amy Burvall e Dan Ryder (1), “nosso acesso à informação e habilidade de criar e brincar com mídias democratiza o panorama do aprendizado. Uma sala de aula de pesquisadores, experts, editores e criadores pode ser território não-familiar para muitos, mas é de fato um retorno às nossas inclinações naturais enquanto aprendentes.”

Na prática, isso requer a própria transformação das práticas pedagógicas, buscando integrar a decodificação de mídias, a leitura reflexiva e a criação de narrativas em todas as disciplinas curriculares, orientando de forma muito intencional o processo de descoberta e produção de conteúdo, e exige um olhar tanto para os objetivos curriculares como para os objetivos midiáticos a serem alcançados.

Um exemplo prático é envolver os próprios alunos na curadoria de textos que servem para o estudo de algum assunto dentro da disciplina, estimulando que tragam não só notícias e vídeos como também coleções de imagens, memes, gráficos, anúncios, quadrinhos ou canções. Desta forma poderão discutir juntos quais as fontes mais confiáveis, quais podem apresentar preconceito ou viés, quais estão manipulando ou escondendo informações, decidindo coletivamente quais são melhores para o aprendizado e por que.

Um outro exemplo é como explorar o tema da desinformação em diversas disciplinas. Aqui, não se trata apenas de estabelecer se um determinado conteúdo é falso ou verdadeiro, mas sim de aprender a “interrogar” a informação, considerando, entre outras coisas, sua procedência e intenção. Assim, em Ciências, aprendemos sobre fontes confiáveis e os impactos da circulação de desinformação nas tomadas de decisão; em Matemática, examinamos como estatísticas e gráficos podem mentir, ocultar ou confundir; em História, discutimos a importância de fontes primárias, os múltiplos pontos de vista e o impacto de campanhas de propaganda e desinformação; e em Linguagens, refletimos sobre como nossas escolhas criativas e estéticas impactam as mensagens e como palavras podem ser utilizadas para confundir ou enganar.

E na educação infantil, como os professores podem trabalhar educação midiática com os pequenos?

Os educadores nos perguntam sempre em que idade devemos iniciar a educação midiática. Costumamos responder que cada vez que os pequenos entram em contato com uma nova mídia, essa é a hotra de começar a refletir sobre ela. Muito antes de serem alfabetizadas, as crianças têm contato com mensagens em embalagens de brinquedos ou alimentos, anúncios na TV, em jogos e em ambientes como o YouTube. Todas as imagens e mensagens ali contidas têm intenção e autoria, representações de gênero e de papéis sociais, e podem refletir pluralidade ou exclusão.

Quando a criança vê TV, por exemplo, podemos começar a identificar as intenções de cada mensagem — vender ou entreter. Uma ideia é brincar de descobrir o que é programação e o que é anúncio, e, nos anúncios, o que está sendo vendido. Nas embalagens de brinquedos podemos discutir se há clichês de gênero, se as imagens são excludentes, ou se os tipos de família representados são os únicos possíveis.

Também é possível começar a tratar do tema da confiabilidade das informações através de exemplos do próprio cotidiano das crianças, como por exemplo quando ocorrem acusações. Perguntas como “de onde veio essa informação”, “como você sabe disso”, “você viu ou alguém falou” ajudam a separar o que é fato e o que é boato, introduzindo o tema das fontes e evidências em linguagem acessível.

Quais os temas dentro da educação midiática você considera que são mais urgentes? E como me preparo para abordar esses temas de forma sensível com meus alunos?

É urgente tratarmos do tema da desinformação, que tem sido bastante crítico em todo o mundo, gerando episódios de descriminação e violência, impactando processos eleitorais e até a saúde pública. Jovens e adultos precisam ser preparados para verificar a confiabilidade das mensagens e não disseminar teorias de conspiração, fakes ou boatos. Percebemos que, ao desenvolver essas habilidades, os jovens frequentemente se tornam vetores de combate à desinformação em suas próprias comunidades, levando esse conhecimento para seus amigos e familiares.

Uma dica para aumentar a aceitação e a eficácia desse tipo de aprendizado é não politizar a discussão, evitando sempre que possível exemplos de temas muito polêmicos que possam causar resistência entre algumas famílias ou na própria gestão escolar. Quando focamos na construção das habilidades, utilizando exemplos mais inofensivos, percebemos que os jovens conseguem transpor por conta própria essas habilidades de leitura crítica para as informações falsas que chegam, por exemplo, nos grupos de família.

Um outro objetivo urgente é o de educar para a pluralidade, a empatia e a aceitação do outro, identificando e combatendo o preconceito, o racismo estrutural e o discurso de ódio. O racismo e o preconceito são construções sociais que frequentemente começam e se propagam com representações nas mídias — através de estereótipos, ausência de diversidade, ou da omissão pura e simples de certas vozes. É fundamental introduzirmos a questão da representação nas mídias desde cedo, buscando inclusive materiais que normalizam a diversidade étnica, religiosa, a pluralidade de biótipos, orientações sexuais e configurações familiares — e permitindo que todas as crianças possam se ver espelhadas em figuras que ocupam posições de prestígio e realização na sociedade.

Como os professores podem se preparar para ajudar seus alunos a tornarem-se cidadãos críticos, conscientes e participativos? Por onde começar?

Os professores, como aliás a maioria das pessoas que começaram a lidar com esse universo da comunicação digital depois de adultos, precisam se habituar a olhar de forma mais intencional e reflexiva para sua própria atuação enquanto consumidores e produtores de conteúdo. Será que conhecemos esses ambientes e ferramentas que utilizamos todos os dias? Sabemos como eles funcionam? Será que sabemos como fazer uma busca eficiente, por exemplo, ou que impactos a personalização algorítmica tem sobre nossas informações, nossas escolhas e até as nossas reações? Precisamos estar mais atentos às nossas próprias responsabilidades, e atuar proativamente na defesa de um ambiente de comunicação mais saudável na sociedade.

O site do EducaMídia oferece uma série de recursos para a formação do educador. Além do Guia da Educação Midiática, que é uma obra de referência com exemplos de atividades para várias faixas etárias e disciplinas, indicamos também as trilhas do Glossário Interativo e a série de lives Educação Midiática na Prática, que cobrem temas como busca, bolha informacional, confiabilidade das fontes, fake news, participação cidadã, representação nas mídias, leitura de imagens, uso de memes, hashtags e muitos outros. Acesse também as coleções temáticas do EducaMídia para aprender e ensinar sobre assuntos específicos.

Uma vez apropriados desses conteúdos, os educadores podem explorar os nossos recursos e planos de aula para construir atividades — além , é claro, de conectar-se à comunidade de praticantes da educação midiática nas redes do @educamidia, para continuar enriquecendo o seu aprendizado e sua prática.

(1) “Intention: Critical Creativity in the Classroom”, Amy Burvall e Dan Ryder, Edtechteam Press (2017)

Mariana Ochs é coordenadora do EducaMídia, programa de educação midiática do Instituto Palavra Aberta

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Mariana Ochs

Designer, educator, Google Innovator. Coordinator of EducaMídia. Exploring design, media and technology in education, and empowering youth in the digital age.