As muitas faces da educação midiática

Mariana Ochs
4 min readFeb 16, 2023

Combater a desinformação é apenas a ponta do iceberg. Em diversas formas e contextos, a educação midiática aumenta a resiliência da sociedade a violações de direitos.

Texto publicado em 16/02/2023 como parte da série de artigos do EducaMídia na Folha de SP que busca trazer conceitos de educação midiática para professores de educação básica.

Ilustração criada por Mariana Ochs no MidJourney

Em uma sala de aula do 5° ano, crianças de dez anos preparam uma série de vídeos que explicam como os seus influenciadores favoritos são remunerados, descobrindo a relação entre audiência expressiva e renda. Em outra sala, o 8° ano estuda o conflito em torno às terras indígenas, analisando como gráficos podem construir narrativas distintas e buscando fontes que tragam diversidade de vozes nos relatos sobre a situação. No Ensino Médio, outra turma se debruça sobre fotos de Machado de Assis, discutindo como e porque a manipulação das imagens promoveu o seu “branqueamento”.

O que todas essas atividades têm em comum é a possibilidade de trazer para o cotidiano escolar, de forma transdisciplinar, a prática constante de leitura crítica e a autoria ética e criativa de mídias, preparando os jovens para que possam aprender, se comunicar, exercer os seus direitos e respeitar os direitos dos demais em uma sociedade fortemente midiatizada, em que multiplicam-se não só as mensagens mas também os ambientes, formatos, intenções e autores.

A cidadania digital é um direito, reconhecido por organizações como a Unesco, e estabelecido em políticas públicas. Mas já foi o tempo em que a noção de “cidadania digital” representava apenas uma perspectiva protetora, focada em fortalecer os jovens contra ameaças como cyberbullying, roubo de senhas, predadores ou superexposição. Hoje entendemos que exercer a cidadania — dentro e fora do ambiente digital — passa sobretudo por empoderar os jovens para que possam ocupar, de forma segura, ética e responsável, a verdadeira praça pública que é a internet, e seus diversos canais e formas de comunicação; aproveitando as oportunidades trazidas pela democratização do acesso à informação, mas enfrentando também os seus desafios. Esse é o papel da educação midiática.

Precisamos, por exemplo, mitigar o alcance e o impacto das fake news, que ameaçam desestabilizar governos, atrapalhar processos democráticos e até prejudicar a saúde pública. No momento em que as atenções do poder público e organizações em todo o mundo voltam-se para o enfrentamento à desinformação, fica claro que é crítico educar todos os cidadãos, independentemente da faixa etária, para que desenvolvam o hábito de checar as informações que recebem e que, além disso, sejam capazes de identificar fontes e informações confiáveis e entender como a mídia molda nossas opiniões e crenças. Não é à toa que, por todo o mundo, multiplicam-se projetos de news literacy (educação para a notícia); discutem-se também formas de introduzir o combate à desinformação via políticas públicas e de incorporar a educação para a informação ao design das próprias plataformas sociais.

A desinformação é sem dúvida a ponta mais visível do iceberg. Mas a educação midiática é muito mais do que o combate às fake news. Em tempos de polarização e pós-verdade, a resiliência da sociedade às violações de direitos no ambiente digital depende de um olhar mais holístico. Não basta apenas saber avaliar a confiabilidade da informação. É preciso ir um pouco além, aprendendo a avaliar criticamente o que nos chega em textos e imagens (o que diz essa mensagem, e por que? Quem está por trás dela?); a pensar e refletir eticamente (quais normas e valores regem a minha atuação nas mídias? Como meus vieses e crenças interferem?); a produzir conteúdos de forma criativa e ética (o que vou criar e compartilhar tem impacto positivo, ou fere os direitos de alguém?); e a participar ativamente da comunidade através das mídias (o que significa fazer parte de uma comunidade? Qual o meu papel e como posso atuar para o bem coletivo?) *.

Em suma, ler, escrever e participar do mundo conectado requer não só o desenvolvimento de habilidades instrumentais e operacionais para lidar com as tecnologias de informação e comunicação, mas também atitudes dialógicas e reflexivas, consciência cidadã e responsabilização.

Toda a sociedade, em sua diversidade de contextos e sem distinção de faixa etária, precisa de educação midiática. Se a escola é o lugar natural para o desenvolvimento mais sustentado e sistêmico dessas habilidades, não há como negar o valor de projetos pontuais em outros contextos. Fora do contexto escolar, adultos e a população sênior também podem se beneficiar de recursos e oficinas. E projetos que escolhem um recorte específico, focando, por exemplo, em habilidades informacionais ou no desenvolvimento de mídias comunitárias, também são valiosos.

Educar midiaticamente a sociedade é bem mais do que implementar uma disciplina: é trabalho para uma geração. É preciso desenvolver um currículo de referência, ampliar a formação inicial e continuada de educadores, fomentar as iniciativas das organizações da sociedade civil, dos veículos de comunicação e das empresas de tecnologia, mobilizar os formadores de opinião e fortalecer as políticas públicas que darão lastro a tudo isso. Enfrentar esse desafio requer um esforço coletivo em que todos são muito bem-vindos.

* Habilidades citadas no currículo do projeto colombiano https://digimente.org

Mariana Ochs é coordenadora do EducaMídia, o programa de educação midiática do Instituto Palavra Aberta

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Mariana Ochs

Designer, educator, Google Innovator. Coordinator of EducaMídia. Exploring design, media and technology in education, and empowering youth in the digital age.